uma avenida no inverno
[conto]
antologia de contos de autores contemporâneos
11° volume - setembro/2005
câmara brasileira de jovens escritores - rio de janeiro/rj

Jamile Ferreira
("jamille nasc", em Patos de Minas/MG 2005)

 
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Imagem de Eri Gomes

"foi, sem dúvida, a melhor peça teatral que já havia visto em toda a minha vida. e ao mesmo tempo, o melhor presente de aniversário que já ganhei.

tinha acabado de voltar da minha fuga de mi mesma; mal chego, e ele me convida para assistir uma peça de teatro como presente do meu aniversário – mesma data que há poucos dias tinha tentado tirar da minha memória pelo simples fato de não ter muito o que comemorar.

relembrando desse dia, um sorriso aberto e estúpido se prega no meu rosto sem nenhuma explicação; você não adora esse sorriso imbecil e a facilidade com que ele surge, te condenando a aceitar que você é um imbecil e não pode fazer nada contra isso?

a caminho do teatro, o metrô atrasa, quase sou assaltada, por minutos não dou de cara com a portaria fechada, minha maquiagem quase vai pras cucuias, meu cabelo nem comento, sinto que sou a mulher mais fútil e desnecessária por me preocupar com maquiagens e cabelos, mas tudo se dissipou no limbo quando ele apareceu na recepção do prédio, com aquela estúpida latinha de cerveja na mão direita.

a primeira vez que o vi, foi num festival de música alternativa. ele veio de trás do palco, andando devagar, como sempre, meio que olhando pro chão, com uma camiseta vermelha, uma credencial idiota escrita "produção" e a eterna latinha de cerveja na mão esquerda... eu prefiro quando ele a carrega na mão esquerda...

que tipo de pessoa repara em que mão mais gosta que outra pessoa leve sua latinha de cerveja?

acho que o mesmo tipo de pessoa que se apaixona pelo vento frio através da janela do carro, enquanto repara na paleta de cores em tons de marrom e verde das montanhas pequenas da estrada a caminho de lavras novas, para onde já viajamos, sabendo ser esse um dos momentos mais gostosos da sua vida.

eu, esse tipo de pessoa, fiquei ali, com aquele sorriso imbecil na cara, feliz por ver de novo aquela latinha de cerveja.

fomos andando em direção ao teatro. a casa dele era a poucos quarteirões e a noite estava fria, meio úmida. nada justificava pegar um carro e perder aquele clima ameno, isso na minha dimensão - ele provavelmente estava apenas morrendo de preguiça de dirigir!

ao atravessar a rua, precisamos apertar o passo em função dos carros e por uma fração de segundos, ele parou na minha frente e me deu o beijo mais inesperado e inteiro que alguém pode dar, enquanto tocava echo and the bunnymen – the killing moon, cortada abruptamente por algumas buzinas de motoristas alheios à importância dos beijos inesperados.

mas ele não é do tipo de pessoa que tem esses arroubos, e eu não sou o tipo de pessoa com quem acontece esses arroubos!

logo, na realidade, a única coisa que aconteceu foram dois amigos atravessando uma rua, enquanto ela reparava a presença insignificante da lua no céu, dispersa à vinda, um tanto quanto abrupta, de um ônibus. e ele, preocupado com sua latinha ficando vazia mais rapidamente do que ele esperava, enquanto notava que talvez sua amiga seja atropelada por um ônibus!

pegamos a fila para entrar no teatro e ficamos ali: eu, com medo de olhar para aqueles dois enormes olhos azuis e acabar morrendo afogada neles, e ele tentando tornar o ar entre nós um pouco mais fácil de ser respirado.

de repente, a árvore que nos cobria começou a soltar um monte de “microflores”, fazendo chover sob nossas cabeças. tanto tempo tentando deixar o meu cabelo menos patético do que ele se apresenta no trivial e agora aquelas flores irritantes!

mentira! aquela situação era ótima, pois além de aliviar a tensão tornando tudo peculiar, me deu coragem de olhar pra ele, com a desculpa de ver se ele estava tão ou mais inundado de flores do que eu!

enquanto desgraçávamos e ríamos da existência daquelas fores, eu comecei a reparar um casal na nossa frente: ela, com movimentos muito delicados, sorria e tirava as flores que estavam sobre a suéter de lã dele; e ele, tirava com muito cuidado, algumas flores do cabelo dela, tudo muito natural. parecia um amor calmo, até tímido, talvez de pouca idade, mas mútuo.

senti inveja daquele casal. eu nunca tive coragem sequer de olhar para ele, quanto mais para buscar aquele grau de intimidade.

entramos no teatro, sentamos e as luzes apagaram. e nesse exato momento descobri que ele era o detentor do que considero “o melhor lugar no mundo inteiro”. ali, do lado dele, sem precisar falar nada, sem precisar me preocupar com perfumes ou presenças, percebi que era o lugar que sempre quis estar: lugar onde o silêncio é confortável, onde me sentia salva da necessidade de representar. eu sabia que ele estava ali e não sentia necessidade de saber mais nada.

e por horas e horas a fio, vendo atuações, identificando com os personagens, suas falas e experiências, ouvindo a trilha sonora que era a mesma dos meus acontecimentos, fiquei completamente absorta por ter descoberto o meu melhor lugar no mundo inteiro!

fim da peça. a sensatez manda ir embora para casa, mas como é difícil sair do lugar que se adora...

eu tinha passado os piores 9 dias da minha vida, numa cidade sem nenhum amigo, mergulhada no passado familiar que me dói muito até hoje, tentando esquecer o quanto eu considerava vital a presença dele no meu cotidiano, sem sucesso por sinal. e agora, estava ali, sabendo que o melhor era simplesmente ir embora, mas esperando que ele convidasse pra qualquer coisa, o que aconteceu! seu apartamento, comer pizza!

enquanto a pizza não chegava, fui para janela. seu apartamento, na principal avenida da cidade, décimo quinto andar, era um verdadeiro martírio. toda vez que precisava ir ao centro da cidade, a primeira imagem era aquele prédio que nunca significou absolutamente nada até o advento da sua existência naquele festival!

quantas e quantas vezes desci aquela avenida, sem a menor necessidade de passar por ali, olhando pra cima, tentando adivinhar qual era a janela certa e o que ele estaria fazendo naquele momento.

e mais uma vez eu estava lá em cima, olhando aquela avenida, relembrando de todos os buracos nos quais tropecei, querendo que, numa dessas coincidências, ele estivesse ali na janela, velando meus passos.

e naquela noite, a avenida estava diferente: azulada, brilhante, especial. como tive raiva daquela avenida: como ela podia fazer aquilo comigo? era como se ela tivesse tirado o brilho de mim. naquela noite, eu estava constrangida, pequena, com medo dos olhos dele, eu havia perdido o brilho, a segurança, eu não me sentia mais especial, se é que um dia eu fui.

e olhando pra avenida, acabara de descobrir para onde meu brilho havia ido e fiquei com mais raiva ainda quando ele chegou perto de mim e disse que a avenida ficava diferente no inverno, mais azul, mais brilhante, especial.

até hoje espero que ela devolva o meu brilho.

comemos, conversamos, rimos, ouvimos aquela música. como ele pôde colocar aquela música? ele não sabia, mas eu ainda estava com as feridas abertas. simplesmente não consegui ficar lá. levantei de repente e fui embora.

enquanto andava pela avenida, desejei mais que tudo no mundo que ele estivesse naquela janela, mas essas coisas só acontecem na minha dimensão e eu ainda não descobri como viver nela."

up!