"foi, sem dúvida,
a melhor peça teatral que já havia
visto em toda a minha vida. e ao mesmo tempo,
o melhor presente de aniversário que já
ganhei.
tinha acabado de voltar da minha
fuga de mi mesma; mal chego, e ele me convida
para assistir uma peça de teatro como presente
do meu aniversário – mesma data que
há poucos dias tinha tentado tirar da minha
memória pelo simples fato de não
ter muito o que comemorar.
relembrando desse dia, um sorriso
aberto e estúpido se prega no meu rosto
sem nenhuma explicação; você
não adora esse sorriso imbecil e a facilidade
com que ele surge, te condenando a aceitar que
você é um imbecil e não pode
fazer nada contra isso?
a caminho do teatro, o metrô
atrasa, quase sou assaltada, por minutos não
dou de cara com a portaria fechada, minha maquiagem
quase vai pras cucuias, meu cabelo nem comento,
sinto que sou a mulher mais fútil e desnecessária
por me preocupar com maquiagens e cabelos, mas
tudo se dissipou no limbo quando ele apareceu
na recepção do prédio, com
aquela estúpida latinha de cerveja na mão
direita.
a primeira vez que o vi, foi
num festival de música alternativa. ele
veio de trás do palco, andando devagar,
como sempre, meio que olhando pro chão,
com uma camiseta vermelha, uma credencial idiota
escrita "produção" e a
eterna latinha de cerveja na mão esquerda...
eu prefiro quando ele a carrega na mão
esquerda...
que tipo de pessoa repara em
que mão mais gosta que outra pessoa leve
sua latinha de cerveja?
acho que o mesmo tipo de pessoa
que se apaixona pelo vento frio através
da janela do carro, enquanto repara na paleta
de cores em tons de marrom e verde das montanhas
pequenas da estrada a caminho de lavras novas,
para onde já viajamos, sabendo ser esse
um dos momentos mais gostosos da sua vida.
eu, esse tipo de pessoa, fiquei
ali, com aquele sorriso imbecil na cara, feliz
por ver de novo aquela latinha de cerveja.
fomos andando em direção
ao teatro. a casa dele era a poucos quarteirões
e a noite estava fria, meio úmida. nada
justificava pegar um carro e perder aquele clima
ameno, isso na minha dimensão - ele provavelmente
estava apenas morrendo de preguiça de dirigir!
ao atravessar a rua, precisamos
apertar o passo em função dos carros
e por uma fração de segundos, ele
parou na minha frente e me deu o beijo mais inesperado
e inteiro que alguém pode dar, enquanto
tocava echo and the bunnymen – the killing
moon, cortada abruptamente por algumas buzinas
de motoristas alheios à importância
dos beijos inesperados.
mas ele não é do
tipo de pessoa que tem esses arroubos, e eu não
sou o tipo de pessoa com quem acontece esses arroubos!
logo, na realidade, a única
coisa que aconteceu foram dois amigos atravessando
uma rua, enquanto ela reparava a presença
insignificante da lua no céu, dispersa
à vinda, um tanto quanto abrupta, de um
ônibus. e ele, preocupado com sua latinha
ficando vazia mais rapidamente do que ele esperava,
enquanto notava que talvez sua amiga seja atropelada
por um ônibus!
pegamos a fila para entrar no
teatro e ficamos ali: eu, com medo de olhar para
aqueles dois enormes olhos azuis e acabar morrendo
afogada neles, e ele tentando tornar o ar entre
nós um pouco mais fácil de ser respirado.
de repente, a árvore que
nos cobria começou a soltar um monte de
“microflores”, fazendo chover sob
nossas cabeças. tanto tempo tentando deixar
o meu cabelo menos patético do que ele
se apresenta no trivial e agora aquelas flores
irritantes!
mentira! aquela situação
era ótima, pois além de aliviar
a tensão tornando tudo peculiar, me deu
coragem de olhar pra ele, com a desculpa de ver
se ele estava tão ou mais inundado de flores
do que eu!
enquanto desgraçávamos
e ríamos da existência daquelas fores,
eu comecei a reparar um casal na nossa frente:
ela, com movimentos muito delicados, sorria e
tirava as flores que estavam sobre a suéter
de lã dele; e ele, tirava com muito cuidado,
algumas flores do cabelo dela, tudo muito natural.
parecia um amor calmo, até tímido,
talvez de pouca idade, mas mútuo.
senti inveja daquele casal. eu
nunca tive coragem sequer de olhar para ele, quanto
mais para buscar aquele grau de intimidade.
entramos no teatro, sentamos
e as luzes apagaram. e nesse exato momento descobri
que ele era o detentor do que considero “o
melhor lugar no mundo inteiro”. ali, do
lado dele, sem precisar falar nada, sem precisar
me preocupar com perfumes ou presenças,
percebi que era o lugar que sempre quis estar:
lugar onde o silêncio é confortável,
onde me sentia salva da necessidade de representar.
eu sabia que ele estava ali e não sentia
necessidade de saber mais nada.
e por horas e horas a fio, vendo
atuações, identificando com os personagens,
suas falas e experiências, ouvindo a trilha
sonora que era a mesma dos meus acontecimentos,
fiquei completamente absorta por ter descoberto
o meu melhor lugar no mundo inteiro!
fim da peça. a sensatez
manda ir embora para casa, mas como é difícil
sair do lugar que se adora...
eu tinha passado os piores 9
dias da minha vida, numa cidade sem nenhum amigo,
mergulhada no passado familiar que me dói
muito até hoje, tentando esquecer o quanto
eu considerava vital a presença dele no
meu cotidiano, sem sucesso por sinal. e agora,
estava ali, sabendo que o melhor era simplesmente
ir embora, mas esperando que ele convidasse pra
qualquer coisa, o que aconteceu! seu apartamento,
comer pizza!
enquanto a pizza não chegava,
fui para janela. seu apartamento, na principal
avenida da cidade, décimo quinto andar,
era um verdadeiro martírio. toda vez que
precisava ir ao centro da cidade, a primeira imagem
era aquele prédio que nunca significou
absolutamente nada até o advento da sua
existência naquele festival!
quantas e quantas vezes desci
aquela avenida, sem a menor necessidade de passar
por ali, olhando pra cima, tentando adivinhar
qual era a janela certa e o que ele estaria fazendo
naquele momento.
e mais uma vez eu estava lá
em cima, olhando aquela avenida, relembrando de
todos os buracos nos quais tropecei, querendo
que, numa dessas coincidências, ele estivesse
ali na janela, velando meus passos.
e naquela noite, a avenida estava
diferente: azulada, brilhante, especial. como
tive raiva daquela avenida: como ela podia fazer
aquilo comigo? era como se ela tivesse tirado
o brilho de mim. naquela noite, eu estava constrangida,
pequena, com medo dos olhos dele, eu havia perdido
o brilho, a segurança, eu não me
sentia mais especial, se é que um dia eu
fui.
e olhando pra avenida, acabara
de descobrir para onde meu brilho havia ido e
fiquei com mais raiva ainda quando ele chegou
perto de mim e disse que a avenida ficava diferente
no inverno, mais azul, mais brilhante, especial.
até hoje espero que ela
devolva o meu brilho.
comemos, conversamos, rimos,
ouvimos aquela música. como ele pôde
colocar aquela música? ele não sabia,
mas eu ainda estava com as feridas abertas. simplesmente
não consegui ficar lá. levantei
de repente e fui embora.
enquanto andava pela avenida,
desejei mais que tudo no mundo que ele estivesse
naquela janela, mas essas coisas só acontecem
na minha dimensão e eu ainda não
descobri como viver nela."
up!